Desde antes de nascer, o sujeito já está inscrito em uma trama que não é sua. Seu nome, seu lugar na família, seus significados futuros: tudo já começa a ser escrito por outros. A criança não nasce em um espaço neutro — ela emerge em uma estrutura simbólica marcada por discursos que a antecedem, por desejos alheios, por lacunas e frustrações que não lhe pertencem, mas que a constituem. O que parece ser seu “destino” é, muitas vezes, a repetição de dores herdadas, trânsitos inconscientes entre gerações.
Na psicanálise, essa condição é clara: o sujeito é falado antes de falar. O desejo do Outro — dos pais, da cultura, da sociedade — marca a infância como uma escritura silenciosa, uma espécie de missão inconsciente. Muitas vezes, os filhos tornam-se projetos narcísicos dos pais, uma extensão de seus sonhos não realizados. Realizam sem saber o que os move, desejam sem saber se o desejo é seu. Carregam segredos, culpas e esperanças como heranças não ditas, como uma herança psíquica indelével.
A literatura revela esse drama com crueza. Em A Metamorfose, de Kafka, Gregor Samsa é a imagem absoluta do sujeito esmagado pelas expectativas invisíveis: ele se transforma em um inseto no momento em que deixa de ser útil à família. Sua nova forma revela o que sempre esteve oculto — a verdade de um “eu” rejeitado, que só era tolerado enquanto servia ao desejo dos outros. Kafka, também em sua vida, jamais escapou da culpa silenciosa diante do pai, símbolo do Outro tirânico e estruturante. Não tentava realizar os sonhos paternos, mas era paralisado por suas exigências.
Na mitologia, esse tema se repete de forma trágica. Édipo tenta escapar de um destino profetizado, mas ao tentar fugir, cumpre exatamente aquilo que lhe foi anunciado. Ele não realiza sonhos: repete tragédias. Assim como nas narrativas do realismo mágico latino-americano, como em Cem Anos de Solidão, o destino familiar é um ciclo — uma maldição genealógica que insiste em retornar, como se o tempo não fosse linear, mas espiralado. Os filhos vivem não como sujeitos livres, mas como herdeiros de algo que não escolheram.
A filosofia existencial aponta esse conflito como o drama da liberdade. Para Sartre, viver segundo o olhar do Outro é viver em má-fé, negando a própria liberdade para não carregar o peso da escolha. Já Nietzsche propõe que o sujeito só se torna autêntico quando transvalora os valores herdados — quando rompe com o “dever-ser” socialmente imposto e ousa criar-se a si mesmo. Mas essa criação é difícil, pois o “dever-ser” não vem apenas da razão (como queria Kant), mas da voz constante da família, da tradição, da cultura.
Surge então a pergunta essencial: os filhos querem realizar os sonhos não realizados dos seus pais? A resposta não é simples. Muitas vezes, sim — mas não porque escolheram isso. São movidos pelo amor, pela lealdade inconsciente, pela necessidade de pertencimento. Outras vezes, fazem disso uma prisão, um peso existencial que os impede de se reconhecerem no próprio desejo. Essa realização pode ser ato de amor, de alienação ou de obediência — tudo depende da consciência que o sujeito tem sobre o desejo que o move.
O sujeito que deseja de fato — que ousa saber o que quer — é raro. Ele precisa romper com o destino que lhe foi traçado, escutar seu vazio, e criar-se para além da herança. Esse é o gesto da liberdade: não negar o passado, mas não se curvar a ele.