A função materna: Corpo, alma e travessia

Ser mãe é uma transformação ontológica, como dizem os filósofos; é tornar-se outra para receber o outro.

Para nascer uma criança, precisa nascer uma mãe. E essa mãe não é aquela que existia antes — é uma nova mulher que emerge com o parto, não apenas biológico, mas simbólico. A criança, “entra em nossa casa sem vir de fora” — ela brota do íntimo, como um segredo que o corpo guardou no ventre. Um ser humano que morou dentro de outro, que se alimentou de seu sangue, de seus medos, de seus sonhos.

Na linguagem, Winnicott nos ensina que a mãe é o primeiro espelho. Através de seu olhar, o bebê começa a se perceber como um eu separado, mas ainda profundamente ligado. É no rosto materno — vivo, atento — que a criança se reconhece, se crê, se constroi. Sem esse espelho, não há imagem, não há sujeito.

Na mitologia, as grandes deusas-mães — Ísis, Deméter, Gaia — não são apenas geradoras, mas guardiãs da alma do mundo. Elas sustentam o universo em seus braços, como a mãe sustenta a psique frágil do filho em formação. Ser mãe é assumir essa função arquetípica: tornar-se base, chão, abrigo, fonte de sentido.

E como nos ritos, onde o iniciado atravessa o deserto interior para renascer, a maternidade é um rito de passagem. Ela revela feridas ancestrais, convoca forças desconhecidas, ilumina os labirintos da alma com a luz suave e implacável do amor. Um filho nos mostra o que havia de escuro, de negado, de não dito. Ele nos obriga a renascer com ele.

Clarice Lispector disse que “ter um filho é a nossa única eternidade”. E talvez seja isso: ao gerar um outro, tocamos a eternidade da vida, do tempo, do destino. É um gesto poético, cósmico, radical. A poesia da maternidade não está apenas nos gestos doces, mas no caos fecundo que ela instala.

Porque ser mãe é abrir-se para ser atravessada, é tornar-se ponte entre mundos. É permitir que outro ser habite seu corpo. Ser mãe é ser continente, linguagem, silêncio, memória e carne. É ser casa antes de qualquer casa. 

Mas para que essa função se constitua, a mulher precisa enfrentar uma encruzilhada: o desejo de ser mãe e a exigência de ser no mundo. A mulher contemporânea vive sob o peso de múltiplas cobranças — ser mãe, profissional competente, parceira amorosa, e ainda manter a imagem de si mesma intacta, produtiva, ideal. A maternidade, que poderia ser território de criação e vínculo, é muitas vezes tomada como campo de dever, controle e culpa.

Entre o mito e o mercado, a mãe é emparedada. De um lado, a idealização da mãe santa, abnegada, inspirada nas figuras de Maria ou Deméter — aquela que tudo dá, tudo entrega, tudo suporta. Do outro, a imagem da mulher moderna que “dá conta de tudo”, mesmo que silenciosamente se desintegre. A sociedade cobra que a mãe nunca falhe, mas não oferece suporte para sua própria reconstrução.

Na mitologia, há também mães que erram, que sofrem, que abandonam ou são abandonadas. Medeia, Hera, Gaia — cada uma expressa aspectos sombrios e profundos da função materna. Porque ser mãe não é estar imune ao humano. É justamente na possibilidade do erro, da dúvida, do cansaço, que a função materna pode se tornar mais verdadeira: não como mito idealizado, mas como travessia real.

Assumir a função materna, portanto, é mais do que responder a uma exigência social. É encontrar, no meio do caos das expectativas externas, um ponto interno de verdade — um desejo que se sustente apesar da cobrança, um amor que se renove apesar do esgotamento, uma voz que diga: “Eu sou mãe, mas sigo sendo eu.”